BOTÃO HEAD

investigações e reminiscências, Victor estará à volta de um mesmo nome e de uma mesma história: a da mulher que morrera em seus braços. De fato, amanhã na batalha pensa em mim, diria a falecida ao protagonista, se pudesse. Não quero aqui fazer uma análise do romance (já o fiz no Clube do Livro do mês de outubro). A intenção é tomar emprestado o tema que parece saltar de suas linhas e fazer um breve comentário. Parto da seguinte questão: por que Victor precisa saber mais sobre aquela que o convidara para uma noite amorosa e morrera ao seu lado na cama? Qual a necessidade de, mesmo compreendidas as causas naturais que levaram ao seu óbito, explicadas dias depois pelo jornal da cidade, conhecê-la? De um tempo para cá, tenho cada vez mais pensado que, enquanto homens, nos apropriamos das coisas de modo histórico. Aliás, gente muito melhor do que eu já o dissera, de diferentes maneiras, nos últimos quatrocentos anos (ressalto aqui a obra de Giambattista Vico como um marco inaugural nesse sentido). O que tem me parecido mais verossímil com o passar dos anos e dos meus estudos, é que inteligimos a realidade como uma grande narrativa – o que não significa que a ignoremos como coisa, objeto, nem que ocultemos a sua substância independente dos nossos tecidos de linguagem simbólica e interpretativa. Contudo, se guardamos uma parte do mundo dentre nós e com algum sentido, é porque o tornamos história, conexa e processual, mais ou menos clara, particular ou coletiva. Sendo assim, a aproximação que fazemos dos mais diferentes campos – até mesmo da matemática, da geologia ou da química – é como contadores de histórias, prontos a tomar os conteúdos/acontecimentos nas mãos e harmonizá-los num enredo que console um pouco mais o nosso sofrimento por tão pouco saber. Quero dizer que um mesmo grande motivo está por trás da obstinação de Victor pela história da jovem esposa que viu morrer e da dedicação do filósofo contemporâneo pela teoria de Kant: uma fome de plenitude explicativa, de um oásis de conhecimento que permita a ambos concluir: “ah, então é assim”. Então é por isso que ela convidava homens para o seu quarto quando o marido viajava; então é por isso que os portugueses comem castanhas no dia 11 de novembro; então é por isso que o cinema argentino é tão bom; então é por isso que aquele amigo me abandonou; então é por isso que as noites de inverno me deixam tão triste. O arco da história, dos pequenos e grandes eventos, éaquilo que desenhamos sobre as coisas a fim de possui-las; é o modo como tornamos o mundo efetivamente dizível – não apenas porque falamos ou conferimos nomes às coisas pela linguagem que desenvolvemos, mas porque cumulamos de começo, meio e fim o que aparentemente é único, contínuo ou aleatório. A experiência pode ser testada de maneira muito simples: tomemos nas mãos um livro pela metade ou cheguemos ao cinema já no terço final do filme. O que nos incomodará? O que estará por trás da sensação de desorientação ou incômodo que provavelmente nos acompanhará nos dois casos? Isto: a história que não se sabe, os capítulos perdidos, o sentido prejudicado pela ausência de contexto e conhecimento prévio. Mais: teremos reduzida a experiência estética e intelectual nos dois casos porque nos escapará o arco da história narrada, os motivos do herói, as razões tantas mortes nas cenas finais, a explicação para a descrição de um sonho do protagonista no capítulo XXI. Nossa mente, poderíamos afirmar, tem fome de narrativa. Talvez por isto, ao longo da história humana, mitos, lendas e grandes epopeias tenham desempenhado papel tão saneador e amplificador da nossa inclinação e necessidade natural. Os bons e velhos modos de contar parecem mesmo educar a capacidade de narrar e os modos abrangentes de o fazer. Atuam, os clássicos tão celebrados ao longo dos séculos, como balizas de possibilidades dessa condição humana, que permite-nos facultar ao homem a definição de animal contador de histórias. E aquilo que não contamos, por deliberação ou esquecimento, passa a não existir de alguma maneira, assim como os próprios clássicos literários mencionados já não pertencem ao imaginário de contos da maioria dos narradores atuais. Acrescente-se que o livro de Javier Marías tem como protagonista um roteirista – não poderia ser mais exclamativa a escolha: Victor passa todo o romance buscando conhecer não só a história da mulher que visitara como amante, mas também a sua própria, a de seus companheiros e até mesmo a do rei de Espanha. Cada ponto da obra revela algo sobre alguém, desenrola os novelos imbricados que representam as histórias pessoais de cada personagem, nobre ou plebeu, pois nosso narrador se interessa, e ao mesmo tempo sofre pelas partes da história que não sabe. E ainda há engano, justaposição
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